segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Um estudante de Direito, negro e pobre





Um estudante de Direito, 

negro e pobre




Charles Ferreira dos Santos



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Esta é a história de 
um estudante de Direito, 
negro, pobre 
e com um sonho:
vencer o preconceito, 
o inimigo oculto.



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“Nasci sem dinheiro, mulato e livre.”

Lima Barreto



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Dedico 
ao grande guerreiro da resistência
negra à escravidão,
Zumbi dos Palmares.
Em sua homenagem,
todo dia 20 de novembro,
comemora-se o
Dia Nacional da Consciência Negra
no Brasil.


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   E agora?


   O diploma embaixo do braço, sentado num muro, nem tão longe do salão que não pudesse ver as pessoas, nem tão perto que pudesse escutá-las. A música, podia ouvi-la mais como um sopro, menos como uma melodia. Se estava feliz? Só o tempo dirá. Mas, o que quer que estivesse sentindo, passará. Eternos, talvez, só mesmo um poema de Drummond e o preconceito. 

   E agora?

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   Aula inaugural de Direito


   L. acomodou-se no anfiteatro da UNESC, universidade que nos últimos tempos só fez crescer. Lembrava ainda as palavras de sua mãe, quando deixou sua casa em busca de seus sonhos.

   - Mãe, deseje-me sorte! A quem mais poderia pedir tal coisa, se amigos assim, que pudessem partilhar os primeiros degraus de sua trajetória, não os tinha?

   - Vai filho, vai fazer a sua história, desejou-lhe a boa mãe. Ela que teve a generosidade de acolhê-lo como filho. Ela que era, talvez, tudo o que tinha conquistado até aqui. Há de orgulhar-se de mim, pensou. Não tinha a ousadia de dizer-lhe, mas tinha a certeza que tudo faria para tanto.

   A convocação de um colega para pronunciar algumas palavras trouxe-lhe de volta à realidade. Chamaram C., um dos poucos com quem tinha conversado. C. então tomou o microfone e suave e profundamente começou: “O conhecimento está no ar... “ O que se seguiu não foi ouvido por L., tal frase calou profundamente na alma deste estudante de Direito, tanto que, tempos depois, quando prendia já seu canudo sobre o braço, sufocando um soluço, tais palavras ainda ressoavam em sua mente. Moveu seus olhos para o teto, a abóbada cinza daquele prédio limitava o espaço físico, ainda sim pode sentir a grandiosidade do acervo, e pronunciou baixinho... “no ar, o conhecimento está no ar. Se está no ar, então, será meu oxigênio de agora em diante”. 

   É bom que se diga, L. tinha sérias dificuldades em fazer amigos. Melhor dizendo, fazer até que conseguia, mas não tinha o traquejo para mantê-los. Logo adiante, traços de sua personalidade, por ora, acrescento ainda, que era negro, pobre e solitário. Se interessar, nem bebia, nem fumava. Gostava de mulheres, do cheiro das mulheres, mas até seus 27 anos, ponto de partida de seu curso, não havia presenteado ninguém pelo dia dos namorados.

  Terminada a aula inaugural, L. seguia sozinho em direção ao estacionamento, onde sua moto se encontrava. Aproximou-se de um grupo de colegas tentando se enturmar. R. zombava do mestre de cerimônias. 

   - Digam-me colegas, ele falou “bom dia a todos e bom dia a todas”, ou ouvi mal?

   - Ouviu bem, disse um. 

   Ainda hoje, se você estiver de passagem pela UNESC e tiver um tempinho para assistir um seminário e rever suas instalações, é possível que alguém lá esteja dizendo: bom dia a todos e a todas, com aquela voz de frequência modulada.


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   Marcas profundas


   Não foram poucas as dificuldades pelas quais passou. Sua precária formação escolar, embora já deixasse transparecer genuíno gosto pelos livros, exigia um esforço bem maior que seus colegas. Não conseguia traduzir em palavras as mil ideias que transitavam em sua mente. Uma mesma frase continha a afirmação, a negação e a refutação de ambas, sem uma vírgula sequer. Quem leu Cem Anos de Solidão sabe bem do que se está falando, com a diferença que Gabriel Garcia Marquez foi nobel de literatura.

   Um episódio com sua professora de português marcou-o profundamente. Uma resenha era a tarefa. Caprichou, esmerou-se, entregou o trabalho e ansioso aguardava a nota. “Que faça tudo novamente, inintelegível", usou esse termo a mestra. Engana-se se você acha que foi isso que o marcou. Custa-me dizer, mas não posso falsear a história. A professora, num saracoteio, curvou-se para pegar a caneta que caíra, e como disse, sua peça íntima profundamente o marcou. Exagero dizer que depois disso jamais seria o mesmo.

   Ainda transitava alegremente pelos corredores. Só mais tarde iria acusar os estilhaços decorrentes de sua cor e condição social. Uma e outra, porque preto rico não está na pele de L. Num daqueles encontros fortuitos, nos corredores da UNESC, cruza-se com SS., que protocolarmente o beija. Foi fisgado, e a paixão arrebatadora perturbou-lhe os estudos por alguns dias. Teria sido aquele beijo? Evidente que não, foi o seu cheiro. O cheiro, como já foi dito, o cheiro o inebriou, e não seria a única vez. Melhor esclarecer um ponto, perfume é uma coisa, cheiro é outra. Qualquer mulher pode estar perfumada, mas é o seu cheiro que conquista os homens.

   Nesse ínterim, enquanto o sangue fervilha em suas veias, e a musa encantadora rouba-lhe todos os pensamentos, seus estudos pairam esquecidos nas apostilas desordenadas, copiadas em duplicidade. Uma delas fala da paixão e esse pequeno detalhe o faz despertar para a realidade. Platão foi o filósofo que o salvou desta vez. Estava lá na apostila, para Platão a paixão é o desejo orientado para o mundo das sombras, uma fuga da realidade essencial.


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   A negritude de L.


   A., um professor de Penal, fã do latim e avesso à preservação ambiental (existem), fiel ao escript, ministrava sua aula. O acadêmico pediu um aparte e fez breve comentário. Em sua fala cometeu um erro de português. Ainda estava na segunda fase de Direito. Sócrates, diante da afirmação que seria um gênio, teria dito: “Só sei que nada sei”. Marcos Bagno, linguista, sustenta que linguagem é aquela falada nas ruas, o resto é gramatiquice. Irrelevante é qual teria sido o vocábulo, importante foi o exagerado tom de ressalva. Se o estudante já falava pouco, desde então, ficou mudo. 

   O mundo dá voltas. A negritude esfolada do estudante não aceitou de bom grado aquele acontecimento. Com o vento em seu rosto, costurando com sua moto a avenida Centenário, queria acreditar que aquele incidente não ocorreu por obra de sua cor; não se convencia.

  As atividades eram em grupo. Aquele dia a palavra estava saltitando de um em um, somente ele permanecia calado. Num espasmo de lucidez, A. ( ecce homo*) o interpela: “Você que nunca diz nada, qual a sua opinião?” O mesmo que o fez calar, e não havia como esquecer, agora questiona o seu silêncio. Como disse, o mundo dá voltas, e reciclar é preciso, inclusive as velhas opiniões formadas (ave Raul).

   Respingos chocam-se na sua negra pele. Respingos de exclusão. É dura a vida de um negro pobre. Porém, nem todo negro pobre é um pobre negro. Sua obstinação rasgaria o traçado que o destino lhe dera. 

   O evento é uma festa da turma do Direito. Bebida, música e dança. Lá pelas tantas, bebida e música. Finalmente, bebida. Transitou entre vários grupinhos. Depois, sentindo-se isolado, sentou-se num canto. Lá fora, a chuva. Pensou correr. Quis chorar. Olhou a bela J. ..., como tudo nela era tão doce. Resoluto, tomou o caminho de casa. Vai que a veja em sonho, a bela e doce J.



* Ecce Homo, eis o homem. 

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   Amigos nunca partem


   Encontrou um amigo, ao qual pode falar do seu mundo, das suas coisas e de seus sonhos. Já não estava mais só. Era um tal C. Entretanto, seu amigo um dia partiu, e já não saberia dizer se valeu a pena ou não conhecê-lo. Pelo menos, se não o tivesse conhecido, não se sentiria agora ainda mais só. 

   Assim se foram as primeiras fases do Curso de Direito. A vontade e a dedicação começariam a mudar a forma como era visto por colegas e professores. Menos J., que fingia não saber os efeitos devastadores que sua simples presença provocava.

   Se um dia perdeu seu amigo, agora era a vez de perder seu querido e admirado professor W. Este que lhe havia dado vários conselhos, que lhe havia incentivado a ler todos os livros, também agora partia. Buscou forças, lembrou de algo que lera em algum lugar. Jamais estará só aquele que um dia conquistou um amigo. Olhou para o alto. O revoar das nuvens indicava chuva. O firmamento há de chorar por mim, pensou.

   Todos partem em busca de seus sonhos, sabia disso.


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   Algemado em frente sua própria casa


   A rotina de trabalho tomava-lhe todas as forças. Estudava pela manhã. Sua labuta começa às dezessete horas e estendia-se até o cumprimento do cronograma. Um lavoro pesado, físico, desgastante. Por vezes, quando tudo corria bem, terminava às duas horas. Não raro, trabalhava até o amanhecer. 

   O primeiro ano realmente foi espinhoso. Ainda sim, conseguiu aprovação em todas as disciplinas, tinha evoluído. Se no início era motivo de chacota, agora já percebiam o seu potencial.

   Abandonaria o emprego ao final do ano. Queria dedicar-se exclusivamente aos estudos. Era uma decisão de risco, mas auspiciosa. Uma boa alma lhe ajudava em seus custeios, com o fundo de garantia e alguns trabalhos temporários poderia se manter. E claro, com a bolsa do artigo 170, que vinha bem.

   No entanto, essas dificuldades materiais, o esgotamento físico, e até mesmo a sonolência nas primeiras aulas, nem de perto se comparavam à dor que por vezes sentia. Um pesar, uma tristeza infinita, sentimentos esculpidos em sua alma. 

   A carga emocional vem de longe. Sem amigos, sem namorada, sem infância, sem um pai. Renova-se, aprofundava-se, como por exemplo, naquele dia em que, postado em frente a seu prédio, aguardava a chegada de sua Mama. 

   Batida policial, abordagem truculenta. Algemado em frente sua própria casa. Seu delito? Ser negro. Porque outro não havia de ser. Deixe estar que numa daquelas palestras no anfiteatro da UNESC, uma autoridade abordava o tema Segurança Pública. No espaço reservado aos questionamentos, relata o ocorrido e conclui pedindo mais humanidade na abordagem policial. Nem tudo está tão ruim que não possa piorar, diz o velho ditado. Tal autoridade simplesmente justificou a necessidade da dura abordagem. Prosseguiu, e em dado momento bradou: “se não está nos autos, não existe”. Ora, pensava L., o que realmente importa nunca está nos autos. Quem inventou a miséria? Ficaria melhor se tivesse dito, se não está no google, não está no mundo, ou ainda, o que está no mundo, não está nos autos. Pensou em treplicar com tais argumentos, mas calou. 

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   Um flerte


   A bela e doce J. não atinou para a paixão que havia despertado. Tampouco L. haveria de lhe falar. A volúpia de uma paixão não se sustenta, a menos que haja um olhar de provocação, um sorriso disfarçado, um segredo, um cheiro que se renove. Não houve isto ou aquilo, por isso as brasas apagaram-se no coração desse estudante de Direito. Livre estava, mas não por muito tempo, como veremos adiante.

   L. era um tocador de harpa, músicas clássicas. Ensinava aos filhos dos amigos da igreja da qual também pertencia. Digamos que era seu hobby. Certo dia, na casa da pequena Júlia, ensinando-a, conheceu Heloisa, que tinha uma amiga chamada Carol.

   Carol havia chegado há pouco tempo na cidade para estudar. Precisava de alguém que o orientasse. L. precisava de alguém. Não foi muito para que Carol, com seu sorriso espontâneo de alguém que sorri para a vida, alvejasse o coração do rapaz. O jeito atrevido, porém inocente, foi como fagulhas certeiras a ferir o estudante.

   A paixão está no ar. No ar a felicidade. Até a desbotada pintura da universidade parece que agora se revestia de cores envelhecidas. As pessoas taciturnas voltaram a sorrir. E o céu, o sol, as noites! Há vida, muito além do Código Penal, sim, há vida. A vida chama-se Carol.

  Com a autoestima elevada, e o longo tempo dedicado aos estudos, começou a fazer-se notar. 

   Carol, sua companheira, sabia, alimentava, provocava seu amigo. 

   O curso avançando, provas, trabalhos, apresentações. Quando tudo corria bem, um revés.


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   O universo não é opaco


   A boa alma que custeava parte de seus estudos, por imprevistos financeiros, deixou de fazê-lo. A fonte secou. Urge retornar ao trabalho, e assim foi feito. 

   O alargamento de seu mundo abriu-lhe novas janelas. O universo não é opaco; a ignorância, sim. “Conhece-te a ti mesmo” indagava Sócrates. Mal percebia o estudante que os horizontes ampliados abalariam os pilares tão bem plantados de sua religiosidade. Era chegado o tempo de questionar os preceitos absolutos. Seu curso já progredia para as últimas fases. Estranhamente, só agora tinha consciência que se via refutando verdades. Lembrava, ainda, das primeiras fases, o Direito Naturalista. Sentia que sementes ficaram incubadas, e envolvido em seus estudos, não percebeu que tomaram vida. Confuso, voltou os olhos para dentro de si. Precisava conhecer-se melhor. Aquele calouro de então está morto, nasce um outro homem, lapidado no curso de Direito, mas ciente de seu ideal: vencer o preconceito.

   Se sua protetora interrompeu a ajuda, se suas crenças vacilavam, restava a meiga Carol. Naqueles dias, quando somente uma grande amiga poderia ouvi-lo, foi surpreendido por um terremoto. Carol, a atrevida inocente, apresentou-lhe o namorado, ou ficante, o termo que usou.


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   A viagem da imaginação


   SS., J., e Carol não souberam amá-lo. O futuro bacharel olhava para frente. Continuava sendo preto, pobre e solitário. Mas algo havia mudado em seu perfil. Conhecia o terreno em que estava pisando, no tocante ao conteúdo das disciplinas. Porque o terreno escorregadio das vicissitudes humanas, esse terreno não, nunca se conhece, estará sempre mostrando faces inesperadas. Que bom que seja assim, ponderou. 

   As cicatrizes de discriminação e preconceito não se desfazem assim facilmente. São perfeitamente claras na tentativa inglória de agradar a todos. Incapaz de insurgir-se, de impor-se, de virar a mesa.

   L. tem um texto não-linear, entrecortado por metáforas. Retrata um pouco sua própria história. Um estilo que requer amplo domínio da linguagem. Por isso, seus primeiros textos eram desconexos, sem sentido. O que se vê é o estilo mais apurado, ainda obscuro, é verdade, mas capaz de reter a atenção, despertar curiosidade.

   Um bom exemplo está naquele dia, na sala de aula, em que cada um deveria citar e descrever o lugar mais distante que tivesse ido. Se ainda não foi dito, as imediações de sua cidade são os lugares mais longínquos que visitou. Quando então coube falar, descreveu Atenas, a capital da Grécia. Ao final, disse: “Foi então que acordei”. Intencionalmente ou não, usou de artimanha metafórica para dizer que a viagem mais fascinante é a que se faz com a imaginação. A presença de espírito, engenhosamente, livrou-o do apuro; estava aprendendo os segredos da profissão.

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   A felicidade pode esperar


   Caminhava para a reta final. Focado no curso, não teve tempo de viver. Não teve amores, curou-se de paixões. Ressentia-se da dificuldade em se fazer entender. Resignou-se. Estava chegando o grande dia. 

   Gente descartável: o trabalho escravo no Brasil de hoje, esse era o título do Trabalho de Conclusão de Curso. Para ele que sempre esteve preocupado com os Direitos Humanos, nada melhor que poder debruçar-se de corpo e alma em assuntos que lhe eram tão caros.

   As últimas semanas voam. Formalidades. Burocracias. Fotos. Convites. Acabou.

   Sentado no muro com o canudo embaixo do braço, nem tão longe do salão que não pudesse ver as pessoas, nem tão perto que pudesse ouvi-las... Lembrou-se da pergunta feita por sua mãe antes de dirigir-se à solenidade de formatura.

   - Está feliz, filho?

   Teria dito que sim, que o sonho tinha se tornado realidade, como era de não estar feliz. Abraçou-a, beijou-a, e juntos rumaram para o anfiteatro da UNESC.

   Agora, ali sentado naquele muro, olhou para o alto. Uma estrela solitária brilhava no céu. Sabia que tinha perdido a batalha contra o preconceito, mas a vida ainda estava por vir.


sábado, 25 de fevereiro de 2012

Preces

   Luana voltava do culto com um fio de esperança. Teve a sensação que suas preces chegaram aos céus. Havia renovado o pedido para que seu filho mais novo, o Gaio, largasse a vida de drogas, furtos e tantas outras coisas que nem gostava de lembrar. 
   Sentia uma palpitação diferente, pensamentos desordenados faiscavam em sua mente. Lembrou da conversa da noite anterior, na qual implorara para seu filho ter uma vida normal, de trabalho, que fosse a de servente de pedreiro, como a de seu irmão, ou outra qualquer, como todo mundo. Foi assim que arrancou a promessa que lhe encheu de esperanças. Disse-lhe, seu filho, que “seria a última vez, já havia decidido”.
   Deixara a rua principal e entrara na do morro, onde ficava sua casa. Caminhava lentamente, revivia os dias em que tivera no fundo poço, quando engravidara de Gaio. Tão tomada pelas drogas que nem tinha ideia de quem poderia ser o pai de seu filho. Culpava-se eternamente pela personalidade dele, por sua rebeldia despropositada, sua invasão precoce ao mundo de fumaças, cheiros, e viagens irreais, naquele ambiente doentio, empoeirado e triste em que ainda vivia. 
   Algo de esperança assoprava em sua alma. Assim como um dia pode se distanciar desse mundo, imaginava o dia em que seu filho também pudesse se livrar desse lamaçal que o engolia aos poucos. Sentia-se só nessa luta, por isso às vezes fraquejava, desenganava-se, mas logo retomava suas esperanças, jamais desistiria de seu filho.
   Ao longe, poderia ver seu casebre, se os seus olhos não tivessem cabisbaixos, enterrados em lembranças, remoendo o passado sombrio que se arrastava até aqui. 
   Pessoas se aglomeravam no entorno da casa de Luana. Jazia ali o corpo sem vida de Gaio. Uma bala atingiu o centro de sua cabeça, quando realizava aquele que dissera seria o último, o último furto, para então deixar essa vida; faria isso “mais por sua mãe, menos por si ou por quem quer que fosse, porque as pessoas, todas lhe são estranhas, não se importaria com quem desconhecia sua existência”, coisas que teria dito à sua esposa, que soluçava, como a adivinhar os passos do futuro, quando o viu partir aquele dia, para retornar perfurado pelo projétil que levou sua vida.
   Três mil, quinhentos e sessenta reais, e vinte cinco centavos, nada que pudesse fazer falta ou deixar o seu proprietário em dificuldades. O quanto valia a vida de seu filho. O dinheiro é recuperável; a vida, não. 
   Semanas se passaram. Foi ao culto. Estranhamente aquele dia seu filho a acompanhou. Lá, antes que o evento começasse, pessoas conversavam, entre elas, seu filho reconheceu o algoz de seu irmão, aproximou-se para ver se ouvia de que falavam. Ouviu que bajuladores elogiavam o assassino pelo ato de coragem, simulavam pedir autógrafo. Então, o herói da comunidade entrou no templo, o pastor acabara de anunciar que as preces iriam começar.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Bairro Brasília, resgate da dignidade



Crianças brincam de bola na rua.
Um menino se equilibra num carrinho.
Mais ao longe,
pirralhos correm.
Há um certo ar de pureza
nessas inocentes criaturas.
Mas essa é a rua de um bairro chamado Brasília.
Um adulto salta de casa,
trôpego,
cambaleante,
está ligeiramente embriagado.
São três horas da tarde.
O sol deste verão está forte.

Quantas dessas crianças
inocentes,
felizes,
que se divertem nessa rua do bairro Brasília,
serão,
amanhã,
esse adulto que cambaleia à deriva,

sem esperança,
vencido
pela miséria da vida?