sexta-feira, 4 de maio de 2012

Pinturas em grafite


   Pegou o único objeto que restara daquilo tudo que já tinha entendido que era um sonho: um tosco colar de pedras. Depositou-o no bolso de sua jaqueta de couro preta, e saiu. Anoitecia no downtown. Ele mesclava as línguas, como era de costume entre os aspirantes a boy. Apoiou-se no paredão de concreto que separava a rua do malcheiroso rio. Olhou pela última vez aquele colar que um dia fora a coisa mais valiosa que já tivera. Arremessou-o. As pedras mergulharam nas escuras águas e geraram um sem-número de elipses que se distanciavam simetricamente do epicentro, dando ao gélido e poluído rio uma rara imagem de beleza, provocada pelo presente que ganhara de Rebeca, em seu aniversário de quinze anos. Olhou aquelas ondas que se propagavam em direção à borda, como se viessem ao seu encontro. Abandonou o local. 

   Tempos depois, Eloi entenderia que semelhante atitude em nada resolvera. 

   Havia mudado em vários sentidos. Preocupa-se com a aparência, o corte moderno do cabelo, um perfume da moda. Portava um blackberry branco, no qual navegava com destreza, ora conferindo os recados nas redes sociais, ora travando batalhas medievais, naqueles jogos em tempo real. Poderia ser confundido facilmente com um suburbano. Porém, restavam resquícios daquele menino interiorano. Prestava pequenos favores sem que em tais atitudes pairassem quaisquer segundas intenções. Mas já era um suburbano, mais de corpo do que de alma. 

   Olga, uma ruiva que nada tinha de expansiva. Olhos miúdos que davam à sua face uma expressão de paz e delicadeza. Rosto assimétrico, medidas distantes daquelas que se avizinham ao padrão atual de beleza. Gostava de poesias. Jamais causaria alvoroço em lugares em que fosse vista. Discreta. As qualidades que importam não estão na superfície. Só alguém muito perspicaz poderia penetrar na beleza interior da pequena ruiva de cabelos lambidos. De algum modo, sua presença contrastava com certos ambientes. Olga tinha autonomia. Foi ela quem fez Eloi perceber o belo no trivial, nas pequenas coisas. 

   Quando viu aquele novo colega pela primeira vez, sentiu um estranho palpitar. Sua sensibilidade a movia em direção a Eloi. Tornaram-se amigos. 

   Desde então, formaram um belo casal. Parceiros de todas as horas. Olga, no entanto, percebeu que uma sombra impedia que seu amigo se entregasse para os sentimentos que não mais se encaixavam como simples amizade. Respeitou. Pensou em desistir. Porém, não abandonaria aquela fervorosa paixão contida, sem abrir seu coração como jamais havia feito. 

   Vestiu o seu melhor vestido. Organizou as melhores palavras. Deixou que a brisa daquela noite embalasse suas esperanças. Amou Eloi com todo o amor que tinha para amar. 

   Tentou cicatrizar tudo aquilo. Deixaria que resolvesse seus dilemas, que, como costumava divagar, tinham ficado num lugar distante do passado. Na sua aguçada capacidade de leitura da vida, Olga teria entendido que os conflitos interiores de Eloi não se curariam assim com suas poesias, e, quem sabe, com coisa alguma. 

  Distanciaram-se. O tempo não espera. Ele, entre o passado e o presente. Ela, em seus dias de retiro, lembrou do primeiro bilhete, ainda guardava em sua bolsa. “Olga, hoje estou de folga. Quer sair comigo?” Ao que, brincando, teria respondido: “Eloi, querer eu quero, mas a mãe não deixa”. Foi até um paredão e largou aquele singelo bilhete, que flutuou e logo foi empurrado pelo vento, até banhar-se nas águas escuras daquele rio, que cortava a cidade. 

  Eloi retornou daquela sua viagem ao passado. Imaginou portar sua alforria. Sentaria naquele muro e esperaria Olga. Havia novidades no ar. 

   De fato, cruzaram-se. Foram a um romântico bar, no qual tocavam velhas canções manhosas. Havia preparado o discurso de sua entrega, mas deixaria para dizer-lhe nos primeiros raios do amanhecer. 

  Olga quando o viu, de pronto, começou a falar de coisas, as quais Eloi nem na mais remota possibilidade teria pensado. 

   “Sabe - começou - quando já tinha principiado a escrever as” Memórias de uma ruiva solitária”, um sujeito vindo de uma pequena cidadezinha, fez-me perceber que eu ainda vivia”. Suspirou. “Não sei se já lhe disse - prosseguiu - gosto do tipo rústico, porque nele as emoções estão sempre à flor da pele, não tem a fineza de movimentos, não dissimula sentimentos, diferente de alguns tipos que têm a delicadeza no trato, agem com tamanha desenvoltura que nunca se sabe o que há por detrás de cada gesto, de cada palavra bem empregada”. 

   Continuou então a falar-lhe desse sujeito que a deixou encantada, disse que o tal tinha um sotaque que lhe soava poesia. “Como assim, como assim um sotaque caipira poder soar poesia”, pensava Eloi. 

   Em suas confidências que se arrastaram pela madrugada, Olga segredou a Eloi que por ele sentia grande carinho, via-o como um aprendiz de playboy, mas que, na verdade, não conseguia entender quem realmente ele era. Continuaria a ser sua amiga, se assim o quisesse. 

   Foi uma longa noite, o nascer do sol despontava no horizonte, deixou Olga em sua casa, e caminhou a esmo. Quando percebeu estava no paredão. Em sua extensão, a arte em muros, nas pinturas em grafite, sugeriam um mundo diverso da realidade. Lançou um certo olhar. As mansas e turvas águas tragaram o seu colar, consumiram o singelo bilhete, mas não foram capazes de arrefecer suas lembranças. 

   Chegou em casa. Como era de seu costume, pegou um livro qualquer e abriu ao acaso. Leu o seguinte trecho. 

“E como farei ginástica 
Andarei de bicicleta 
Montarei em burro brabo 
Subirei no pau-de-sebo 
Tomarei banhos de mar! 
E quando estiver cansado 
Deito na beira do rio 
Mando chamar a mãe-d'água 
Pra me contar as histórias 
Que no tempo de eu menino 
Rosa vinha me contar 
Vou-me embora pra Pasárgada”1

   Fechou. Perguntando-se onde estaria a sua Pasárgada, que sempre estivera à procura, adormeceu. 


1. Manuel Bandeira (1886-1968). “Vou-me embora para Pasárgada”.

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