terça-feira, 24 de julho de 2012

Um capricho esquecido





Havia já algum tempo em que seu status era cachorro de rua, mas nem sempre foi assim. Era um dia qualquer como tantos outros, sentia fome, frio, e gritavam em sua silhueta as marcas de abandono. Latiu, quando divisou alguém, naquela tarde de inverno. Até seu latido era triste, fraco, sumido, como que um pedido de socorro. Um pedido de socorro assim sem convicção, sem esperança, talvez por estar escaldado de tantos maus-tratos. Não esperava mais nada que não fosse piedade e indiferença. Uma vida retorcida levava.

É possível que ainda se lembrasse do dia em que fora comprado, e do tempo em que fora tão bem tratado e paparicado, até ter sido deixado de lado e depois jogado ao relento. Abandonado assim como um velho brinquedo trocado por outro qualquer, ou por um capricho que agora não importava mais. Fora comercializado como objeto, e como objeto fora abandonado.

II

No princípio, o filhote em tudo lhes parecia tão meigo. O apartamento respirava vida, e o animalzinho ganhou um lar. Era primavera qualquer que fosse a estação. Passear no parque, interagir com outros da espécie, tudo era motivo de festa, até o seu jeitinho especial de enrolar-se ao dormir. Mais do que um companheiro fiel, que balançava seu rabinho de satisfação, era um ente da casa.

Acostumou-se, por certo, com aquele carinho. Sua amizade com seus donos brotava ao natural, sem esforço, e sem nada exigir em troca. Apegou-se não só às pessoas, mas ao conforto, à comida, à higiene. Diferente de um celular que pode ser substituído  por outro com tecnologia superior, aquele animal é dotado de vida, e tende a envelhecer e demandar cuidados.

O fato é que se cansaram do brinquedo, e aquilo que era fonte de prazer tornou-se um incômodo. O que deveria passar pela cabeça do bicho desprezado? Se mais fiel do que fora não era possível ser. Se mais amigo do que fora não havia como ser.  Se, apesar de tudo, ainda correria ao encontro de seus donos, com o rabo abanando, se acaso os avistasse.

Não saberia dizer o que poderia estar pensando o infeliz cachorro, mas seu latido triste há de ser uma grande pista e servir para algum propósito. Aliás, não era um latido, era um melancólico soluço.


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