quinta-feira, 21 de março de 2013

Cidade maravilhosa

              Por Rute dos  Santos Rossato
         
            Pelo calendário oficial ainda é verão, mas hoje o dia em Porto Alegre é de outono. A chuva fina, a temperatura amena e o céu cinzento são a prova de que mais um verão terminou. O colorido do verão e as vozes alegres que há poucos dias ressoavam aqui estão muito distantes. Restou apenas a lembrança de um momento feliz em que a celebração serviu também como marco para uma nova etapa em nossas vidas. Agora, deste lado de baixo do rio Mampituba, é tempo de recolhimento e reflexão. Somos forçados a reconhecer que o ano realmente começou, ou seja, a vida voltou ao seu curso normal. As férias acabaram, as crianças voltaram para as escolas e o trânsito recuperou a sua costumeira insanidade. A cidade voltou a ser a mesma de sempre, mas para mim está diferente. Perdeu um pouco de seu encanto que foi subtraído pela Cidade Maravilhosa. Sim, o Rio de Janeiro não se contenta em ser uma cidade linda, com verão o ano todo. Essa cidade usa de seus encantos para roubar os nossos filhos, seduzir nossas meninas, hipnotizar nossa gente. E ainda assim, somos absolutamente corrompidos pela promessa de dias melhores, de sonhos realizados. Temos a esperança de que o sonho se transforme em realidade e que um dia possamos dizer “esta é uma obra de ficção, mas qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência.”

Por acaso em algum lugar


Cinco milhões de pessoas, ou mais, se movem todas as manhãs. Ninguém, porém, se moveu para esperar Alex, nem Alex avisou que estaria chegando. Pegou a pequena bagagem e se infiltrou nos becos. Eram cinco ou quem sabe seis da manhã, por aí, caminhava ao lado de um grande muro todo pichado. Os carros ainda mantinham os faróis acesos e passavam em alta velocidade. Uma gangue cerca Alex e um deles aponta uma arma reluzente para sua cabeça. Outros dois saqueiam a bagagem e levam uma jaqueta, um tênis, duas calças jeans. Ninguém para, ninguém viu. Algo eles não levaram, mas quebraram: o encanto que teria atraído Alex ao Rio de Janeiro. Nem bem havia chegado e já fora apresentado ao verdadeiro cartão-postal da cidade, sem retoques.

Primeiro vem a fome, depois a inanição. Entre os dois pontos, o mundo imaginário se funde com o real. Nesse mundo tudo é possível. Não existem as leis da física, nem as leis dos homens, nem as leis de Deus.

II

Um mundo paralelo

Escorou-se no portão de um colégio. Era estranho o que seus olhos viam. Um menino correu em direção à saída e jogou-se nos braços de sua mãe, que o esperava. A criança, espremida pelo abraço, olhou na direção de Alex. O estranho é que o menino nos braços daquela mãe era o próprio Alex. Aquele cheiro era-lhe peculiar, o cheiro do afeto que um dia teve. Apertou com mais força o ombro que o sustentava, deslizou levemente seu nariz pelos cabelos cacheados de sua mãe. Fechou os olhos, como se assim fosse possível prolongar indefinidamente aquele estado. Se faltasse uma prova para a existência do paraíso, esse momento bastava.

                  Vertigens o faziam girar sem sair do lugar. Caiu, desfaleceu. Pessoas indiferentes desviavam o minguado corpo encolhido no chão. Passaram-se horas. O pronto-socorro o transporta para uma ala emergencial. Recebe tratamento: soro, água e uma sopa.

III

Folhas secas de outono

Era um domingo de futebol. Naquele lugar é preciso morrer de paixão por um time e torcer por uma escola de samba, se não for assim, você sempre será um turista, um estranho, um deslocado. Empregou seus últimos trocados num ônibus urbano. O empilhamento humano ficava para trás. Foi até o fim da linha. Ali parece que existia um pouco de paz. A aura que emanava dali sintonizava com seu vago olhar. Um clima de bairro um pouco familiar. Crianças brincavam no parque. As folhas secas de outono davam um toque de acolhimento, de aconchego - alguma sutil lembrança de um lar. Era um convite a Alex para estancar seus passos desorientados. Esticou seu corpo cansado sobre a grama. A sensação de fome só aperta nos primeiros dias, depois o que se sente é apenas fraqueza. E é aí que sua mente se solta e voa. Ninguém ligava para Alex, era uma cena comum. Todos os dias havia pessoas assim. Corpos que se deixavam ficar.

IV

            Aquela bagagem estava sugando suas escassas forças. Mais por instinto de sobrevivência do que por desapego, abandonou-a em algum lugar. Assim, sentiu-se ainda mais leve. Um homem sem dinheiro, sem endereço e com fome, numa sociedade em que as pessoas valem pelo que possuem, não é digno de ser humano. Entrou na fila de uma vaga de emprego. Descreveu seus últimos dias. Foi dispensado. Não tinha mesmo nenhuma esperança de ser contratado, mas não desistiu.

V

Caía a tarde mais uma vez. Precisava encontrar um lugar para repousar. Como se fosse uma ilusão desértica, a visão ofuscava os dizeres daquela placa: “Contrata-se”. Nem sabia mais se seria uma miragem, ou de fato estaria lá. Por fim, andou em sua direção. Contratado. Começaria dia seguinte. Precisava dizer que não teria onde passar a noite. A necessidade é o remédio para todos os orgulhos. Arranjaram ali mesmo um lugar para ele ficar. 
VI

                  Décadas depois voltaria ao Rio. Muitos meninos haviam tentado a sorte nesse tempo. Alguns conquistaram o mundo; outros, bem, um dia chove, outro dia faz-se sol, e quanto a Alex, ele havia encontrado a si mesmo. Nem fez questão de olhar os pontos turísticos. Talvez tivesse entendido que aquelas belas imagens, o sambódromo e o maracanã, apenas desviavam o foco do desequilíbrio social. Era muito cedo e alguns poucos caminhavam à beira mar. Infiltrou-se em alguma rua. Havia ali um cheiro impregnado de esgoto. Um carro possante estacionou num hotel suntuoso. Mendigos ainda dormitavam na calçada. À medida que a hora avançava, o movimento recrudescia. Um engavetamento, a sirene intermitente da polícia, era o ponto alto do rush. 


terça-feira, 19 de março de 2013

Outros tempos nunca serão os anos 70


Tudo ainda está tão nítido: a infância, a adolescência, o primeiro amor. O olhar para trás já é um prenúncio de que alguma coisa mudou. Bate às vezes a nostalgia. Nunca ninguém avisou que certas coisas não voltariam jamais.

Nem ainda deu tempo de se adaptar a uma nova tecnologia e outra já está tomando o lugar desta última. Por vezes, ainda relembramos os velhos discos de vinil e as fitas cassetes. Ninguém escreve mais cartas. Cartas naquele formato: papel, envelope, selo, correio. Não se sabe se a vida acelerou nos últimos tempos, ou se sempre foi assim em todas as gerações. Ocorre que agora é a nossa vez. Nossa vez de sentir que o tempo passou.

“Você ainda nem chegou a seu destino, seu perfume ainda está aqui, posso quase ver seu olhar. Não deve ser saudade, a saudade não surge assim tão de repente. Acho que é amor”. Cartas demoravam três dias para chegar e não eram escritas, eram sentimentos derramados naquele papel em branco.

                   As canções dos anos 70 tinham letras especiais, e as músicas eram de um romantismo inocente. Não há como não sentir saudades. Muitas marcaram a vida para sempre. Claro que não eram melhores que as de outros tempos, mas qualquer outro tempo nunca serão os anos 70, o tempo em que éramos tão jovens.

Não vimos o Festival de Woodstock passar - estávamos distantes demais das capitais -,   nem a onda hippie, mas acompanhamos a novela Dancin’ Days. E nos embalos de sábado à noite, na discoteca, a vida era um festival de ABBA, Bee Gees e John Travolta. Suave era a noite e simples era a vida.

                  Cinquentões.

domingo, 17 de março de 2013

Alguém bateu à porta

     Ganhou um grande prêmio da Caixa. Um fator externo que poderia interromper o ciclo de pobreza, que vinha se perpetuando por gerações.Vivia submerso na mais profunda miséria. Jamais imaginaria que o futuro iria lhe presentear com rara oportunidade.

    Enquanto esse dia não vinha, a rotina se arrastava em meio à penúria. Só quem olhasse de fora enxergaria as mazelas daquele submundo. Quem está ali dentro nada vê, não há como olhar com os olhos de quem pertence a outro mundo. E assim o ciclo se reproduz. Quatro pessoas dividiram o pouco que tinha naquelas panelas. Era um domingo qualquer. Lurdinha e Vilson, o casal; Thais e Vilma, as filhas. As moças de 18 e 19 anos haviam abandonado os estudos, ainda antes de concluírem o ensino médio. Ninguém na família nunca havia estudado, e assim sucedeu com elas. Alguém bateu à porta. Era Vadão. Trazia bebida e uma maço de cigarros. A miséria as pessoas dividem, a riqueza as pessoas negociam. Vadão era um vizinho divertido, fazia planos mirabolantes, principalmente depois que bebia, mas nunca os colocava em prática. Aquele dia também foi assim. Lá pelas tantas outra pessoa bate à porta. Era a esposa de Vadão com seus três filhos pequenos. Queria saber por que Vadão demorava tanto para chegar com as coisas, as crianças estavam com fome. Mas Vadão tinha comprado cachaça e cigarro e agora não tinha mais dinheiro. Sua mulher chorou e esbravejou e destratou a família de Vilson. Ninguém quase nem ligou para Tereza. Ali agora tudo era alegria, pelo menos enquanto o efeito da bebida durasse.

    A segunda-feira seguinte marcaria suas vidas para sempre. Vadão, o fazedor de planos, havia acertado sozinho na mega-sena.

    Mudou-se para um bairro de classe média, longe de seu ninho, longe de seu habitat, mas seguidamente era visto no subúrbio de suas origens. Transitou por algum tempo entre esses dois mundos. Era domingo. Diferente de outros tempos, agora ele era celebridade, estacionou seu carro. Tinha ajudado muita gente, doado casas, carros, móveis, o que lhe pediam. Aquele dia beberam, beberam até não dar mais. Por algum tempo Vadão tentou ser rico, e ser rico é diferente de ter muito dinheiro. Ele não tinha classe, não tinha o trejeito, não tinha o esterótipo de rico, por isso era motivo de chacota, mas enquanto pudesse ser explorado, ainda o suportariam. Era convidado para eventos, mas o que queriam era seu patrocínio, era seu dinheiro. Lutando para ser aceito, foi cedendo aqui e ali. Vadão não conhecia as artimanhas do mundo dos negócios.

    Deixou a esposa e amancebou-se com Thais, a filha de seu amigo. Fizeram da vida uma festa. Sua mulher moveu uma ação de pedido de alimentos e partilha de bens. Em pouco tempo seus investimentos societários começaram a ruir, acumulando prejuízos em vez de gerarem lucros. Seus projetos tinham a consistência de um castelo de areia. Não foi longe para seu capital virar pó.

    Por ironia do destino, uma das pessoas a quem fez doação cedeu-lhe um cubículo aos fundos da casa. Era segunda-feira, seis anos depois daquele dia de sorte. Nem no auge, muito menos na depressão, cuidou da saúde. Essa negligência cobraria seu preço em seu momento mais agudo. Tossiu, era um murmúrio que vinha do pulmão, o efeito acumulado do cigarro e da bebida por longo tempo. Estava sozinho. Alguém bateu à porta. Era o Oficial de Justiça. A pensão dos filhos estava atrasada, havia um mandado de prisão contra ele.

segunda-feira, 11 de março de 2013

A Surfistinha que não deu certo

















Surfar nas ondas de um sucesso é fácil, difícil é fazer um sucesso acontecer. Se o veneno do escorpião vende, então produzam veneno. É a velha política do menor esforço. É danado escrever sob pressão, ainda mais quando o editor já lhe impõe o título, no caso, “A Surfistinha que não deu certo”, e de quebra determina um prazo - urgente. Bem que fui aconselhado pela família, pelos amigos, por quem quer que comentasse: “Nunca deixe seu emprego só para escrever, é temerário”. E eu, teimoso como uma mula, obviamente não dei ouvidos. Não consigo um troco nem mais para a pinga.

 Era jovem, bonita, corpo atraente e tinha um escorpião tatuado no seio. No início, mesmo o trampo sendo caro, sua agenda estava sempre lotada, dava até para escolher e dispensar alguns. Algo começou a dar errado naquele dia em que experimentou cocaína, que um destemperado lhe ofereceu.

“Eu sei que é urgente, estou fazendo, está saindo, está ficando uma eme, mas está saindo. Não me ligue mais, a hora que ficar pronto mando por e-mail”. Era o editor, eu devia tê-lo mandado...

Depois daquele dia, nunca mais seria a mesma. O preço foi caindo, não havia mais agenda. Se não estivesse drogada, estaria de ressaca, e a grana começou a faltar. Cremes, roupas, perfumes, nem sombra do que foram um dia. Luna estava muito mal, mas não o suficiente que não pudesse ficar pior.

Horas de espera e então um cliente. “Não quero transar, só conversar, preciso escrever um conto. Fale-me de sua experiência, conte-me alguma coisa inusitada”.  “Não vai dar, hoje estou travada, nem conversar posso, procure outra”.

Alô, editor, não vai dar, não trabalho sob pressão, procure outro”. Pô!

domingo, 10 de março de 2013

Cartas envelhecidas















“Você é criativa em suas cartas, tem fino senso de humor. Um dia simula um  beijo, faz uma marca de batom no papel. Leva-me a imaginar o contorno de seus lábios, quase tocá-los. Outro dia você põe seu perfume, posso degustar seu cheiro. E eu não tenho nada disso. Tudo parece turvo em meu caminhar. Ah, como você me faz bem, Alice. Será que um dia eu conhecerei você?”. Jair.

Uma praça qualquer em algum lugar. Por ali circulam muitas pessoas. É um lindo recanto arborizado, bem cuidado, gostoso para ficar. Uns caminham, outros correm, alguns levam seus cachorros para passear. Outros, no entanto, depositam cartas.

Jair passava ali, por acaso. O que estariam pensando essas pessoas? E se pudesse ler os seus pensamentos? Sua mão toca em algo, fazendo-o retornar à realidade. É um envelope. Está escrito: “A quem encontrar”. Abre e lê, atenciosamente.













A carta fala da vida e dos caprichos do coração, das emoções, de frases soltas, de coisas sem sentido que fazem todo sentido. Um quê de solidão suspenso no ar. E deixa uma proposta lá no final. Era um convite a quem a encontrasse - que escrevesse a resposta e depositasse embaixo da pedra que fica ao lado do banco, se tivesse vontade. Assinada por Alice, e era só.

Uma correspondência intensa entre eles teve início. Falavam de suas vidas, de seus anseios. Criaram fortes laços de amizade. Nunca, porém, falavam de amor.

Um dia, Jair propôs um encontro, mas não seria para já, seria no dia de aniversário de 20 anos da primeira carta, antes do pôr-do-sol, naquele lugar, aconteça o que acontecer deveriam estar lá. Nem queria resposta, no dia marcado saberia se aceitou.

Trocaram cartas por algum tempo, mas houve um período em que a troca cessou. Nem Alice nem Jair escreveram mais. Um dia, porém, retomaram o velho hábito.

Enquanto isso, cada um vivia seu mundo real. Alice teve amores, desamores, companheiros de jornada. Casou e foi feliz por um tempo. Jair permanecia sozinho, sozinho com aquelas cartas, as cartas que vinham de Alice.

O dia marcado chegou. O tempo havia passado. Jair chegou cedo. A praça estava ali, com algumas mudanças, mas ele tinha envelhecido, não o envelhecimento da idade, mas o da alma.  O que tinha feito em todo esse tempo? Nada, ou quase nada. Algo como se tivesse andado o tempo todo à procura de sua metade, e, tendo encontrado, não pudesse tocá-la.

Alice morava numa cidade bem próxima. Estava chegando, tudo transcorria bem. Entrou na rua da praça, o momento do encontro se aproximava.

No local marcado, houve um incidente. Jair ali sentado, esperando Alice, foi atingido por uma bala, perdeu bastante sangue. O socorro chegou. Quando se preparavam para transportá-lo, alguém grita ao longe: “Espere, espere”. Era Alice que chegava naquele momento. Olhou cartas espalhadas no chão. “Então era ele!”. “A senhora o conhece?”  Ainda a caminho do hospital, não deu mais para Jair, havia perdido muito sangue.

Recolheu todas as cartas e voltou para casa. Havia algo que jamais revelaria a alguém, nem mesmo a ela, se fosse possível. Aquele homem que amou a distância, aquele missivista desconhecido, foi um de seus companheiros, durante certo tempo. Havia rompido com ele, e só agora ligava os fatos. O tempo em que as cartas interromperam foi exatamente o tempo em que estavam juntos.

Tudo parece mais claro agora. Lembra que sofreu muito naquele adeus. Não sabia lidar com o temperamento tristonho, recolhido, um tanto amargurado de Abel - seu nome real. Foi difícil romper, mas romper era preciso. Tinha muito medo de cair junto naquele vazio, no vazio que vivia Abel. Mas, o que é o amor, se pergunta agora? O amor não pressupõe estar junto. Ela amava alguém a quem conhecia somente por meio de cartas. Ela amava Abel, mas preferiu romper. Então, insistia, o que é o amor?  Queria encontrar a pessoa ideal, mas a pessoa ideal também é imperfeita. Talvez ninguém possa ajudar Alice, mas ela teve uma chance de ajudar Abel.

Releu a última carta que havia encontrado no parque: “Quero dar a você o que há de melhor em mim”. Jair.













Jogou todas as cartas num velho baú. Lacrou. Quem sabe o tempo desse conta daquela ferida aberta. Não considerou que o tempo é implacável. É ele que escolhe a ferida a curar.

Não havia mais jeito. Era impossível esquecer. Sabia que jamais seria amada com tamanha intensidade. Um amor havia escorregado entre seus dedos por duas vezes. Abriu o baú, ali estava sua vida, um amontoado de cartas envelhecidas.

sábado, 9 de março de 2013

Ninguém contrata poetas











Estava em cartaz uma peça intitulada Incidente em Antares, apresentada pelo Grupo Cerco. Uma extensa fila se formava próxima ao portão central. Aguardavam o sinal para ocuparem seus lugares nas acomodações do teatro. Um cara anuncia: “Aqui temos um livreto de poemas de minha autoria, o título é Palavras ao Vento. Apenas dez reais, quem vai aproveitar? Palavras ao Vento, dez reais. Juntei palavras, compus frases, alinhei rimas, Palavas ao Vento. Ei, você, veja, um livro de poemas, apenas dez reais”.

Franzino, era sempre renegado nas partilhas de futebol. Desajeitado, não calibrava a força no ping-pong. Era um menino contemplativo. Não interagia, mas observava. Tinha um carisma, digamos,  tímido. Um Jeito diferente de olhar. Desde muito cedo, pegou gosto em manejar palavras, escrever pequenas histórias, estruturá-las em versos. A rimar aprendeu também muito cedo.

Seus amigos seguiram caminhos diversos, formaram-se, profissionalizaram-se, ganharam a vida. Mas ele preferiu as letras, a arquitetura das palavras. A vida mostraria a Teócrito que escolhera um caminho poético. Jamais veria numa porta de fábrica: “Há vagas para poetas”.

Só um poeta vê poesia em todo lugar. Um poema não compra uma viagem para Liverpool, nem rende dividendos na bolsa de valores. Seus amigos viajavam e investiam na bolsa, mas Teócrito apenas fazia poesia. E Teócrito não era triste por isso, nem alegre, Teócrito  era um poeta, e um poeta vê poesia em todo lugar.

Um dia Teócrito descobriu que precisava pagar suas contas, mas ninguém contrata poetas. Então Teócrito teve uma ideia: venderia seus próprios poemas.

“Ei, apenas dez reais, Palavras ao Vento, de minha autoria”.

quarta-feira, 6 de março de 2013

O morador de rua que devolveu 20 mil*





                          






“Aqui está minha grande oportunidade”, bradou Zeca. “O que é?”, perguntou Joana, sua mulher. Zeca havia encontrado um saco com notas de 10, 20 e 50 reais. Estava jogado atrás do abrigo da parada de ônibus. Mais tarde se confirmaria a importância de 20 mil ao todo.

O casal era morador de rua havia já algum tempo. Oriundos da região do Agreste, deixaram os pais e vieram tentar a vida na cidade grande. A esperança de uma vida melhor pouco durou, logo foi se desfazendo diante das dificuldades de encontrar trabalho. Sem qualificação, mal sabendo ler e escrever, não restou outra saída senão morar na rua.

E assim, aquilo que um dia foi esperança agora é um monte de trapos velhos, de caixas de papelão, de miséria. Embaixo daquele viaduto, ouvindo o zunir dos carros que passam em alta velocidade, ficam durante a noite, durante o dia, nos finais de semana, no natal, na virada de ano, porque ali é a casa deles.

Chegaram ao último estágio da miséria, da miséria material. Mas isso parece que não os incomodava. Zeca e Joana, apesar de tudo, eram de uma riqueza que já não mais se vê por aí. Uma riqueza chamada honestidade.

Pegou aquele saco de dinheiro e seguiu em direção à Delegacia de Polícia. Sua mulher, calada, o acampanhou, assim como o acompanhava em todas as ocasiões. Entregou o dinheiro à polícia e voltaram para debaixo do viaduto. A polícia já tinha registro de um furto em um supermercado nas redondezas. Na perseguição, os ladrões se livraram do dinheiro.

Um carro de reportagem encostou, outro carro de reportagem chegou. Zeca e Joana são fotografados, entrevistados, vão parar no jornal da noite. Aquele foi um dia cheio. Os repórteres já foram embora, o momento de celebridade passou. Amanhã mil fatos serão notícias, e o ato do Zeca já terá sido esquecido. E os trapos e caixas de papelão e a vida do Zeca e da Joana estarão ali debaixo do viaduto.

“Zeca” - exclama Joana, olhando com cara de quem medita -, “eu não entendi uma coisa, quando você achou o dinheiro, por que você disse que era sua grande oportunidade?”. “Joana” - Zeca falava pausadamente -, “se minha mãe fosse viva e ficasse sabendo, iria se orgulhar de mim. Eu sempre quis que minha mãe se orgulhasse de mim. Eu quase tenho certeza que minha mãe diria: esse é meu filho”.

* Baseado em fatos reais.

terça-feira, 5 de março de 2013

Tente outra vez





  








Havia tentado largar o fumo outras vezes. Muitas outras vezes. Inúmeras vezes. Nem mais saberia dizer quantas vezes. Uma sucessão de fracassos que afundavam cada vez mais sua autoestima. Sentia-se um pedaço de gente. Meio homem, meio nada.

A nicotina, sua mordaz companheira, já levou muitas vidas, abreviou muitas histórias. Mas o pior que ela faz é pigarrear as entranhas de sua presa.

Um fumante não é um viciado, é um doente. Um doente que precisa de cuidados especiais. Só outro produto químico pode combater com eficiência a dependência química. No entanto, ele não pensava assim. Ele se sentia fraco, se sentia menos, se sentia incapaz. Nunca se considerou um doente à espera de ajuda.

Não era o único a pensar assim. Falavam que dependia só dele, que o que lhe faltava era vontade, persistência, vergonha na cara. Uma ideia repetida 333 vezes se torna verdade. Todas acreditavam nisso, e ele também.

                  Aquele com o isqueiro na mão, ali vai ele tentando outra vez.

O sabor que vem da infância













Era uma tarde doce da infância. Todas as tardes da infância são doces, quando já se é adulto. Dois meninos fazem a escolha dos times. Parece que as forças estão equilibradas. Não há árbitro, mas as regras são respeitadas. O parar o jogo, quando houver falta, é a expressão máxima daquele pacto de coleguismo. Havia ética naquele tempo. Não que a humanidade tenha involuído, mas o sabor da infância leva a acreditar que aquele mundo era perfeito, ou quase.

A bola rola naquele campo de terra. As nuvens se movimentam no céu, e o espaço se enche de sombras. Uma ginga pra lá, um drible pra cá, e o passe. Um cara na cara do gol. Um toque no canto e adivinhe... é gol. Estão ocupados demais para perceberem as manobras do tempo. Uma nuvem de pó contorna o alambrado, o vento aperta, caem as primeiras gotas. Nem mesmo uma pancada forte de chuva põe fim à pelada.

Exaustos, enlamaçados, dão por encerrada a partida. Quatro partem em direção a uma casa. Então, algo inesperado está para acontecer.

Todos ao banheiro, e pelados. A casa foi construída em um plano inclinado, de sorte que, na altura do banheiro, havia pilares que o deixavam a pelo menos dois metros do chão. Havia, naquele tempo, alguma plantação rasteira na horta - pequenas verduras.

Um estalo, e o fundo do banheiro cedeu. Os meninos, pelados e ensaboados, caíram amontoados no chão. Foi uma corrida desesperada naquela horta. Ninguém se machucou. Mas ficou um sabor, um sabor de infância para lembrar.

Barracão, final dos anos 70.


segunda-feira, 4 de março de 2013

O sindicalista que chorou


Nenhuma bandeira sindical faz sentido, se os direitos pelos quais se luta não poderão ser repassados a todos os trabalhadores de uma nação. Um sindicalista eleito pelo voto direito não é suficientemente insano a ponto de radicalizar nessa questão. Os princípios sindicais avançam, velhas práticas são vencidas, mas o corporativismo é um monstro que precisa ser contornado com sabedoria. Cláudio Del Prá Netto sabia disso. Ao longo de sua devoção ao sindicalismo ganhara o respeito de seus pares e da base que representa. Por isso, poderia agora mostrar com tranquilidade a nova face de sua visão. O vanguardismo tem um preço. Estava suficientemente maduro para defender com vigor essa cruzada; no entanto, sabia perfeitamente que iria contrariar muitos interesses.

Fez um périplo pela região, levando sua palavra. Precisava esclarecer alguns pontos. Nem se pode adotar o confronto como premissa, tampouco abrir mão do direito inalienável de questionar, discordar, pedir explicações, e judicializar, se preciso for. Movimentos políticos são mais eficientes que tudo isso junto, e para isso é preciso consciência e formação crítica. E essa formação crítica seria a nova frente que estava disposto a encampar. Sabia do baixo índice de participação e comprometimento dos trabalhadores no tocante à participação em assembleias e ao enriquecimento de debates. Isso precisaria ser mudado.

Subiu à tribuna. Concedeu um aparte. Um de seus pares fez um gesto de despedida. Depois de alguns anos, deixaria em breve a diretoria do sindicato. Seu ciclo havia chegado ao fim, pelo menos como diretor, pois jamais deixaria as fileiras desse movimento, já que em suas veias circula o sangue sindicalista, e é dessa argamassa que é feito. Fechou seu recado com a seguinte mensagem: “Permanecer por tanto tempo como sindicalista é fácil, o difícil é ficar do mesmo lado”. Volnei Rosalen. O Presidente retomou a palavra, visivelmente emocionado, agradeceu alguns companheiros de forma simbólica, como se quisesse atingir cada um que esteve junto na longa caminhada sindical. Interrompeu por momentos suas palavras. Fez-se silêncio no auditório. Havia algo de estranho no ar. Uma lágrima rolou na face do Presidente. Já não dava para dizer mais nada. Chorou. Um sindicalista chorou na tribuna. Esse choro dizia mais, dizia mais do que vários discursos. Foi ovacionado. Sua grande cruzada havia começado naquele instante.

domingo, 3 de março de 2013

O entregador de jornal que não sabia ler

 








Ao toque no controle, o portão eletrônico imediatamente responde. Estava chegando um pouco mais tarde aquele dia. No banco ao lado, estava o presente de aniversário à sua mulher. Um lindo colar dourado, vinte e quatro quilates. Teve a sorte de ainda estar lá, desde o dia em que sua esposa o admirou na vitrine daquela loja, pensava em comprá-lo. Seria uma bela surpresa, um pouco cara, é verdade, mas uma das coisas que o dinheiro podia comprar.

Um show privado aconteceria mais tarde, por isso a festa estava programada para um pouco mais cedo. Seria como se tudo fizesse parte do evento, e por sua conta, é claro. Um aniversário com certo requinte. Talvez assim sua esposa poderia se sentir melhor. Andava com uma estranha tristeza últimos dias.

Jogou-se na poltrona. Era uma ala ao ar livre de onde poderia se ver parte da piscina e o contorno dos arbustos bem aparados de seu jardim. Acendeu seu charuto. Tragou. Fechou os olhos por um instante. Parecia estar bem. Um homem de negócios bem-sucedido. Olhou o relógio, era hora de os convidados começarem a chegar.

Lindos rostos, belos corpos bronzeados, um clima de euforia no ar, era o efeito diabólico do champanhe. As sutis formalidades iniciais já se foram, agora a conversa fluía daquele jeito. Esse era o momento esperado, exatamente no clímax, e veio a palavra de ordem: “tenho uma pequena lembrancinha para você!”.

Suspiros. Exclamações. ”Divino! Deve ter sido caríssimo”. “Ela merece muito mais, é apenas uma lembrancinha”.

Um ruído seco quebraria o encanto daquele momento. Era o jornal que havia sido jogado por cima do portão. “Chame o entregador, separe uns docinhos”. “Você é um homem de sorte, leve isso para casa, hoje é aniversário de minha mulher”. “Leve também esse jornal, hoje aqui ninguém vai ter tempo para ler”. Um ato de solidariedade também pode fazer parte do show. “Os docinhos eu aceito de coração, mas o jornal não me adianta, eu não sei ler”. Fez um leve aceno com a mão e voltou-se para a rua, muitos exemplares ainda deveriam ser entregues.

                 Bummmmm, mais um espumante estourou. Havia lá dentro outra realidade.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Personagens de um lugar

                      "O mundo ideal é você quem faz"


                  Um senhor, apoiado em uma bengala, provavelmente passava dos 60 anos, se movimentava com dificuldades. Deteve-se, de súbito. Arqueou o corpo em direção ao chão. Uma das mãos segurava a bengala, a outra se projetou em direçao a um objeto jogado na calçada. Seu esforço não foi em vão, agarrou-o. Era uma latinha. O observador de tal cena se aproximou. Fez algumas perguntas ao catador de material reciclável. No último ano tinha juntado duzentos quilos, o que lhe rendeu quinhentos reais. Perguntado se era feliz, respondeu afirmativamente. Perguntado se sabia o que estava escrito nas costas de sua camiseta, respondeu quem nem tinha notado nada. Estava escrito: “O mundo ideal é você quem faz”.