“Você é criativa em suas cartas, tem
fino senso de humor. Um dia simula um beijo, faz uma marca de batom no papel.
Leva-me a imaginar o contorno de seus lábios, quase tocá-los. Outro dia você
põe seu perfume, posso degustar seu cheiro. E eu não tenho nada disso.
Tudo parece turvo em meu caminhar. Ah, como você me faz bem, Alice. Será que
um dia eu conhecerei você?”. Jair.
Uma praça qualquer em algum lugar. Por
ali circulam muitas pessoas. É um lindo recanto arborizado, bem cuidado, gostoso
para ficar. Uns caminham, outros correm, alguns levam seus cachorros para
passear. Outros, no entanto, depositam cartas.
Jair passava ali, por acaso. O que
estariam pensando essas pessoas? E se pudesse ler os seus pensamentos? Sua mão
toca em algo, fazendo-o retornar à realidade. É um envelope. Está escrito: “A
quem encontrar”. Abre e lê, atenciosamente.
A carta fala da vida e dos caprichos do
coração, das emoções, de frases soltas, de coisas sem sentido que fazem todo
sentido. Um quê de solidão suspenso no ar. E deixa uma proposta lá no final.
Era um convite a quem a encontrasse - que escrevesse a resposta e depositasse
embaixo da pedra que fica ao lado do banco, se tivesse vontade. Assinada por Alice,
e era só.
Uma correspondência intensa entre eles
teve início. Falavam de suas vidas, de seus anseios. Criaram fortes laços de
amizade. Nunca, porém, falavam de amor.
Um dia, Jair propôs um encontro, mas
não seria para já, seria no dia de aniversário de 20 anos da primeira carta,
antes do pôr-do-sol, naquele lugar, aconteça o que acontecer deveriam estar lá.
Nem queria resposta, no dia marcado saberia se aceitou.
Trocaram cartas por algum tempo, mas
houve um período em que a troca cessou. Nem Alice nem Jair escreveram mais. Um
dia, porém, retomaram o velho hábito.
Enquanto isso, cada um vivia seu mundo
real. Alice teve amores, desamores, companheiros de jornada. Casou e foi feliz
por um tempo. Jair permanecia sozinho, sozinho com aquelas cartas, as cartas
que vinham de Alice.
O dia marcado chegou. O tempo havia
passado. Jair chegou cedo. A praça estava ali, com algumas mudanças, mas ele
tinha envelhecido, não o envelhecimento da idade, mas o da alma. O que
tinha feito em todo esse tempo? Nada, ou quase nada. Algo como se tivesse
andado o tempo todo à procura de sua metade, e, tendo encontrado, não pudesse
tocá-la.
Alice morava numa cidade bem próxima.
Estava chegando, tudo transcorria bem. Entrou na rua da praça, o momento do
encontro se aproximava.
No local marcado, houve um incidente.
Jair ali sentado, esperando Alice, foi atingido por uma bala, perdeu bastante
sangue. O socorro chegou. Quando se preparavam para transportá-lo, alguém grita
ao longe: “Espere, espere”. Era Alice que chegava naquele momento. Olhou cartas
espalhadas no chão. “Então era ele!”. “A senhora o conhece?” Ainda a
caminho do hospital, não deu mais para Jair, havia perdido muito sangue.
Recolheu todas as cartas e voltou para
casa. Havia algo que jamais revelaria a alguém, nem mesmo a ela, se fosse
possível. Aquele homem que amou a distância, aquele missivista desconhecido,
foi um de seus companheiros, durante certo tempo. Havia rompido com ele, e só
agora ligava os fatos. O tempo em que as cartas interromperam foi exatamente o
tempo em que estavam juntos.
Tudo parece mais claro agora. Lembra
que sofreu muito naquele adeus. Não sabia lidar com o temperamento tristonho,
recolhido, um tanto amargurado de Abel - seu nome real. Foi difícil romper, mas
romper era preciso. Tinha muito medo de cair junto naquele vazio, no vazio que
vivia Abel. Mas, o que é o amor, se pergunta agora? O amor não pressupõe estar
junto. Ela amava alguém a quem conhecia somente por meio de cartas. Ela amava
Abel, mas preferiu romper. Então, insistia, o que é o amor? Queria
encontrar a pessoa ideal, mas a pessoa ideal também é imperfeita. Talvez ninguém
possa ajudar Alice, mas ela teve uma chance de ajudar Abel.
Releu a última carta que havia
encontrado no parque: “Quero dar a você o que há de melhor em mim”. Jair.
Jogou todas as cartas num velho baú.
Lacrou. Quem sabe o tempo desse conta daquela ferida aberta. Não considerou que
o tempo é implacável. É ele que escolhe a ferida a curar.
Não havia mais jeito. Era impossível
esquecer. Sabia que jamais seria amada com tamanha intensidade. Um amor havia
escorregado entre seus dedos por duas vezes. Abriu o baú, ali estava sua vida,
um amontoado de cartas envelhecidas.