quinta-feira, 23 de maio de 2013

Mistérios do amanhecer





O orvalho que virou geada. Querem alguns que foi obra do acaso; outros, que foi obra de um Arquiteto. Mistérios do amanhecer.

Como transmitir em palavras a sensação de frio, fico a me perguntar. O frio penetra em todos os poros. Quando falo, a voz parte da boca, mas logo se choca em um bloco invisível de gelo, e quase posso vê-la cair e rolar pela grama encoberta de geada. Animais e plantas usam artifícios para suportar baixas temperaturas. Uma grande parte sucumbe, porém. Outros devem nascer em seu lugar. O fim é a senha para a renovação. Ciclos da vida.

É muito cedo e a cidade ainda dorme. Um pássaro entoou seu cantar costumeiro, um cão uiva para dentro, aponta fumaça em uma chaminé. Em breve, alguns raios devem romper a névoa que se formou no horizonte, e deixar verde o chão agora branco. Mais tarde, a locomotiva - chalap, chalap - põe a cidade em movimento, e a geada então já se desfez. O orvalho não deixa de ser orvalho só por que pela manhã estava pintado de branco.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Coisas de quem mora sozinho

Eu hoje tive de ir tomar café ali na padaria, não havia mais xícara limpa. Ao retornar, voltei decidido pregar um aviso na pia: favor lavar sua xícara após o uso.

Saudade

Vontade de sair pedalar com você, vontade de olhar você fazendo qualquer coisa, deve ser saudade represada.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

O silêncio da mãe


Por Filipe Rossato

Nos últimos dias, enxerguei algo diferente na mãe. A vida já se encarregou de nos colocar diante de várias despedidas, algumas irreversíveis, outras esquecidas; deixamos casas, cidades e amigos para trás, perdendo-nos pelos cantos do mundo que não mais nos pertenceriam. Ainda assim, um ao outro teríamos ao fim de qualquer jornada, em qualquer que fosse a circunstância. E, enquanto pude experimentar a ideia de vida, sempre a tive ao lado, preenchendo com um afeto suave os ambientes em que estivéssemos. Levando adiante os rumos que nos carregariam pelos caminhos que teríamos de seguir, liderava. Adiantava-se sobre o mundo, habilidosa, e me protegia. Mas agora, pela primeira vez, iríamos nos separar.

E nos dias que anteciparam a partida, em um dos momentos mais singulares, encontrei na mãe o peso do silêncio. Ironicamente, durante todos os preparativos da mudança, ninguém falou, opinou e reclamou tanto quanto ela. A cada nova etapa da viagem que se concretizava, ela mostrava novas dificuldades, sugeria que o processo não estava correndo da forma correta, examinava à exaustão mesmo as mínimas decisões. Afogou-me em impedimentos possíveis e impossíveis, até que a iminência da partida tornou-se real.

A correria dos dias, o trabalho e os compromissos lhe foram indiferentes, mas eu sabia que na mãe algo já havia mudado. Aqueles olhares necessariamente tristes, oriundos de uma consciência ampla, de uma dúvida profunda sobre a vida, estavam mais carregados e opacos. Perdidos pelos espaços, preenchidos de um sentimento transbordado lá do interior da mãezinha. Os mesmos olhares do vovozinho, que se camuflavam nas conversas leves, mas se denunciavam brutos e sinceros ao fim dos pequenos risos. Às vezes um pouco doloridos. Os mesmos olhares das tias, dos horizontes em mates ao fim do dia, driblando a dureza das coisas com a força de quem enfrenta o mundo, mas com a dor de quem nunca poderá compreendê-lo. Nela, os mesmos olhos delicadamente expressivos, talvez um pouco ansiosos, quase sempre misteriosos, em sua valentia insistente, a quem a força da natureza me fez tê-la como mãe. Imersa em tantos sentimentos só seus, agora revelados em um silêncio pesado, transparente. Era a guerreira mais feroz exposta em pleno combate: uma menina. Apenas uma menina. 

Os dias finais chegaram. A mãe, sentada no sofá, sem dizer nada, sem se mexer. Não se pode esconder-se das estações, das novas eras; não se pode rejuvenescer nem nascer novamente. É a vida que passa e nos leva atropelados, amarrados nessa existência estranha, confusos com alguma noção de tempo, até que que fiquemos pelo caminho. Fazer as malas, enfim, e partir. Talvez nunca mais veja os olhos da mãe daquele jeito, ou talvez fossem já os meus olhos, resignados, perdidos. Fundos em mim. O mundo parece cada vez menor, e é quando me dou conta da companhia eterna, dos olhos dela, carinhosos, que agora são meus. Se hoje é possível alçar vôo, é porque com ela aprendi a enxergar.

Acho que nenhum dos dois pode compreender direito a ligação que existe. Quando inventaram a palavra "profundo", falavam sobre o amor de mãe, certamente. E, quando a tarde cai sobre nossos ombros, me enxergo pequeno, com a mesma dúvida nos olhos, com a mesma força na vida; em mim, o mesmo silêncio, o mesmo tempo, o silêncio da mãe. Já não mais sentindo nem lembrando, mas dividindo a existência com ela, com o carinho mais honesto e o maior amor possível nesse universo. Até o retorno, até estar no colo de novo, até que seja a minha vez de cuidar dela, até que a vida permita desfrutar o que há de mais precioso e honesto, que é ficar ao lado da mãezinha.

Para que o mundo volte a girar em paz, o meu silêncio precisa reencontrar o dela. Nunca vou amar alguém como a amo; a melhor amiga, a mais bonita do mundo, a mais querida. Desde sempre, a minha pessoa preferida entre todas.

Feliz dia das mães, mãe. Te amo.

E feliz dia das mães para todas as tias e primas dessa família linda, que cultiva o amor.


***


Cidade maravilhosa

Por Rute Rossato

Pelo calendário oficial ainda é verão, mas hoje o dia em Porto Alegre é de outono. A chuva fina, a temperatura amena e o céu cinzento são a prova de que mais um verão terminou. O colorido do verão e as vozes alegres que há poucos dias ressoavam aqui estão muito distantes. Restou apenas a lembrança de um momento feliz em que a celebração serviu também como marco para uma nova etapa em nossas vidas. Agora, deste lado de baixo do rio Mampituba, é tempo de recolhimento e reflexão. Somos forçados a reconhecer que o ano realmente começou, ou seja, a vida voltou ao seu curso normal. As férias acabaram, as crianças voltaram para as escolas e o trânsito recuperou a sua costumeira insanidade. A cidade voltou a ser a mesma de sempre, mas para mim está diferente. Perdeu um pouco de seu encanto que foi subtraído pela Cidade Maravilhosa. Sim, o Rio de Janeiro não se contenta em ser uma cidade linda, com verão o ano todo. Essa cidade usa de seus encantos para roubar os nossos filhos, seduzir nossas meninas, hipnotizar nossa gente. E ainda assim, somos absolutamente corrompidos pela promessa de dias melhores, de sonhos realizados. Temos a esperança de que o sonho se transforme em realidade e que um dia possamos dizer “esta é uma obra de ficção, mas qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência.”

Meu filho

Por Aristeu Ferreira dos Santos

      Ser ou não ser é uma questão de ser e não do ser. E eu tentei sê-lo.
    A cada dia que passa vejo que são poucas as pessoas que se empenham por um ideal. A maioria vive por viver. É preciso ter ideal e ideal é um conjunto de ideias que impulsionam a vida, que dirigem a vida e que dão esse entusiasmo para viver.

    Sem ideal o homem não utiliza sua inteligência, sua vontade e sua liberdade. Fui e sou um idealista. E por isso, analisei, me esmerei, arregacei as mangas e fiz a minha parte. Tentei não ser um mero espectador. 

    A alegria de viver, a satisfação de viver surge daquilo que a gente é e tem. Meu filho Rui. Amei o que você escreveu para mim. Ao ler a sua mensagem vi e senti que sou muito mais daquilo que meus olhos veem. Sou muito mais daquilo que meus ouvidos ouvem, mais daquilo que minha mãos apertam, muito mais daquilo que sinto, percebo, que desejo e faço.

    Quero lhe agradecer e dizer que nem sempre os diplomas ensinam a viver, dão a sabedoria da vida, os gostos de viver, a alegria de viver.

    Em mim está a vida, em mim está Deus. Sou parte da vida total. Amei ter colocado você e seus irmãos nesse mar da vida, pois acredito ter sido uma gota nessa grande Vida.

    Obrigado por me amar.Eu também o amo.

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Aristeu Ferreira dos Santos,  um homem singular

Por Rui Ferreira dos Santos

    Um homem singular, que na sua simplicidade possui um conhecimento amplo, vasto, que não se pode dimensionar, não se pode mensurar. Conhecimento que não se traduz em títulos, canudos, diplomas universitários, mas que encerra muitos deles, infinitamente superiores àqueles, que não se exterioriza em livros, textos, discursos, embora tenha origem, esse conhecimento vasto, em leituras várias de textos, discursos e livros. Livros, discursos e textos diversos, dos mais variados temas, leituras que já se denominou de dialéticas, "leituras dialéticas", dada a sua amplitude e constante questionamento.

    Um homem singular, de costumes simples, de aparência calma, que não gosta de muita exposição, introspectivo, mas ao mesmo tempo brincalhão, simpático.

    Sim, um homem singular. Todo esse conhecimento, vasto, incomensurável foi transmitido, também de forma singular - como é próprio dele -, ao longo do tempo, no dia-a-dia, na labuta diária do campo, da lavoura, da cidade, da pequena fábrica de tubos, da CAMOL, dos jogos de bolão, da própria casa, nos momentos de alegria e também nos momentos de infinita dor - essa dor que o tempo não dá conta e que de quando em quando volta, como agora - tudo isso foi transmitido aos seus filhos - não se questiona, aqui, a compreensão, o proveito ou não que os filhos tiveram desse aprendizado, desse exemplo de vivência. Certo é que o carinho que todos temos por ele é imenso, como ele próprio, singular, impossível de ser medido. De uma forma ou de outra transmitiu e transmite aos seus uma vivência que nos faz homens e mulheres, com a sua mesma estirpe, com ciência e consciência das coisas do mundo, do bem-viver, da importância da família, da união, da solidariedade, do trabalho, da amizade, do amor.

    Enfim, como eu disse desde logo, um homem singular. Ah, ia me esquecendo - por certo porque isto tem sido a tônica de toda a sua vida: retidão de caráter, constante, inabalável. Esse homem, singular, é meu pai. Obrigado por tudo. Obrigado por existir. Te amo.

   Caixas do Sul, 4 de dezembro de 2003.

Mais uma volta em torno do sol

Por Michele  Danielli dos Santos

Pai, e lá se vai mais uma volta em torno do sol. Parabéns!

São 55 anos e uns 110 Charles. Cada um deles movido por um desafio diferente, perseguindo sonhos diferentes. Todos eles bons com os números, com as letras, e com as pessoas. Todos desapegados das coisas, e das pessoas. Todos com paixão pela vida e compaixão pela humanidade. 

“Filha,
quando eu, aos 16 anos, parti para descobrir o mundo, tudo o que eu queria era ser um desconhecido, não aos outros, a mim mesmo. Queria sentir-me dono do destino. Onde quer que eu chegasse, ninguém estaria a minha espera. Nessa viagem, a juventude era toda minha bagagem.”

Pai,
a juventude não é mais toda a tua bagagem, mas ela é o que não falta e nunca faltará na tua bagagem, em qualquer que seja a viagem.

Parabéns pela vida tão bem vivida e por mais este ano que se completa! O meu amor e a minha admiração por ti são imensuráveis, incondicionais e infinitos.


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Na bagagem, a juventude


Por Charles Ferreira dos Santos


      Na bagagem, apenas a juventude. Queria encontrar frases para descrever precisamente o que sentia, quando, ainda muito jovem, partia para conquistar o mundo. Tinha então 16 anos. Não existirão palavras para descrever, mesmo porque são inexatas as recordações. Ainda que fosse o mais longe possível, estaria sempre comigo mesmo. Fiapos de um adolescente inquieto. Fugia para lugar nenhum. Pensava que distanciava-me de mim mesmo. Sempre me encontrava nas paradas ocasionais dos ônibus interestaduais. Vai ser difícil escrever esta história sem vasculhar os esqueletos do passado.

      Cheguei num certo lugar. Onde quer que estivesse, ninguém estaria a minha espera. Senti o doce sabor do desconhecido. Um estranho em todos os lugares. O que precisamente eu queira, não sei dizer. Possivelmente, seria isso: sentir-me dono do destino. 

       Pernoitei num certo bordel. Um menino, em seus 14 anos, empurrava um senhor na cadeira de rodas. Com a mochila ainda às costas, entabulei conversa. 

       Fumei o último cigarro. O expediente daquele sábado havia terminado. Não restaram moedas para o ônibus. Teria que fazer a pé e não era nada perto. A semana tinha sido dura. Fiz a matrícula no colégio e pretendia retomar os estudos. Lembrava ainda das palavras de meu pai: “estude filho”. Não sabia se o amava. Não sabia de nada. Sentei por ali, em algum lugar. Os circulares passavam por mim. Carros, em alta velocidade, levavam pessoas. Cansado, não tinha mais nenhum cigarro. Então, deitei-me ali para descansar. Sonhei. Foi um sonho bom. Minha mãe sorriu para mim, e pegou-me no colo. Encolhi-me e senti o seu calor. Gostaria de não ter acordado. Prossegui caminhando. Meia tarde cheguei. 

      Tudo o que eu queria era ser um desconhecido, não aos outros, a mim mesmo. Ia percebendo que era uma tarefa impossível. Mesmo assim, fui tentando. Um adolescente só conhece as leis que já provou. Eu queria desafiar o futuro. E assim fui seguindo meu caminho. Cada passo em falso que dava era um novo tijolo na estrutura que um dia talvez fosse construir.

      As marcas do passado teimam em não cicatrizar. Fui aprendendo a conviver com elas; no entanto, foram sempre feridas mal curadas, não havia como ignorá-las.

      Prossegui. Nessa viagem, a juventude era toda minha bagagem.


domingo, 12 de maio de 2013

Para minha mãe

     

      





     
     Tinha então dez anos. Cursava a terceira série do primário. Do intervalo eu sempre voltava suado, exausto. Naquela tarde, ainda ofegante, quando fazíamos fila para retornar à aula, a professora me tirou da fila, e disse que fosse para casa, mas fosse direto para casa. Morávamos muito próximo do colégio de freiras. Logo avistei que muitas pessoas se aglomeravam em torno de minha casa. Minha mãe tinha partido. Ela partiu e deixou um vazio, um vazio que até hoje me machuca. Fiz 12 anos, e depois 22, agora, recentemente, 55, e não consigo superar a perda de minha mãe. Entretanto, o pouco tempo que me foi permitido conviver com ela foi o bastante para amá-la sempre, foi o bastante para entender o quanto uma mãe é importante na vida de uma pessoa. Ei, você, que tem a sua, antes de um presente, beije-a, hoje, no seu dia, e em todos os dias.

O inverno outra vez


      O inverno outra vez. Fortes indícios que nova estação se aproxima - menos três graus na madrugada e um lindo dia de sol pela manhã, como se a natureza propusesse uma compensação. As estações vêm e vão e o rompimento do asfalto na rodovia continua lá. A qualquer hora pode acontecer o pior. Quem por ali passa corre risco de vida, ainda que conheça o trecho, que dirá aquele que passa pela primeira vez. Tímidos sinais de obra, algumas cargas de pedra, mas a sinalização é precária. Proximidades da Cachoeira do Avencal, trecho Urubici - Cruzeiro (São Joaquim).

domingo, 5 de maio de 2013

É sexta-feira...



I


Alguns dias são sempre iguais. Até a sexta-feira é igual em sua diferença. Esta sexta, em especial, é diferente das diferenças de outras sextas. Se é que eu consegui me explicar.


II


Vou por outro caminho. O despertar de hoje não abrigava a expectativa de, à noite, encontrar você. Abriu um belo dia de sol. Um gato cruzou a rua, um senhor, na casa dos 80, se equilibra em sua bengala. Nenhum barulho de carro. Apenas um eco insistente a me lembrar que você não viria.


III


As florzinhas da míni-érica, empurradas pelo vento, faziam fila na porta, como pedindo permissão para entrar. Algumas, sem-cerimônias, já estavam lá dentro. Tudo é tão igual na beleza da simplicidade, mas nesta sexta tudo parece sem graça.