Havia já algum tempo em que seu status
era cachorro de rua, mas nem sempre foi assim. Era um dia qualquer como tantos
outros, sentia fome, frio, e gritavam em sua silhueta as marcas de abandono.
Latiu, quando divisou alguém, naquela tarde de inverno. Até seu latido era
triste, fraco, sumido, como que um pedido de socorro. Um pedido de socorro
assim sem convicção, sem esperança, talvez por estar escaldado de tantos
maus-tratos. Não esperava mais nada que não fosse piedade e indiferença. Uma
vida retorcida levava.
É possível que ainda se lembrasse do dia em que fora comprado, e do
tempo em que fora tão bem tratado e paparicado, até ter sido deixado de lado e
depois jogado ao relento. Abandonado assim como um velho brinquedo trocado por
outro qualquer, ou por um capricho que agora não importava mais. Fora
comercializado como objeto, e como objeto fora abandonado.
II
No princípio, o filhote em tudo lhes
parecia tão meigo. O apartamento respirava vida, e o animalzinho ganhou um lar.
Era primavera qualquer que fosse a estação. Passear no parque, interagir com
outros da espécie, tudo era motivo de festa, até o seu jeitinho especial de
enrolar-se ao dormir. Mais do que um companheiro fiel, que balançava seu
rabinho de satisfação, era um ente da casa.
Acostumou-se, por certo, com aquele
carinho. Sua amizade com seus donos brotava ao natural, sem esforço, e sem nada
exigir em troca. Apegou-se não só às pessoas, mas ao conforto, à comida, à
higiene. Diferente de um celular que pode ser substituído por outro com
tecnologia superior, aquele animal é dotado de vida, e tende a envelhecer e
demandar cuidados.
O fato é que se cansaram do brinquedo, e
aquilo que era fonte de prazer tornou-se um incômodo. O que deveria passar pela
cabeça do bicho desprezado? Se mais fiel do que fora não era possível ser. Se mais
amigo do que fora não havia como ser. Se, apesar de tudo, ainda correria
ao encontro de seus donos, com o rabo abanando, se acaso os avistasse.
Não saberia dizer o que poderia estar
pensando o infeliz cachorro, mas seu latido triste há de ser uma grande pista e
servir para algum propósito. Aliás, não era um latido, era um melancólico
soluço.